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Guilherme Veroneze

O que é conservadorismo?


Temperamento comportamental, estado de espírito ou um modo de ver a ordem civil e social que se caracteriza pela aderência a costumes, a convenções, a práticas que sobreviveram ao teste do tempo, pela aceitação de mudanças políticas, econômicas e sociais como algo saudável e natural da vida, porém feitas com prudência e gradualidade, por conta da noção do perigo que a falibilidade e as paixões humanas, inclinadas a utopias e pensamentos revolucionários, representam. Caracteriza-se, também, pela crença numa ordem moral duradoura e pela noção importante de que a vida é um contrato intergeracional entre os que nos antecederam, com os quais aprendemos e dos quais herdamos instituições e práticas, os vivos (que somos) e os que virão, para os quais deixaremos um legado que alicerçará suas vidas. Entre seus principais expoentes estão Edmund Burke, Michael Oakeshott, Russell Kirk e Alexis de Tocqueville.

Para Oakeshott, clássico autor do conservadorismo, ser conservador é “preferir o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o fato ao mistério, o atual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, o riso presente à felicidade utópica”. O conservadorismo é, assim, entendido por Oakeshott e pela maioria dos autores conservadores, não como uma ideologia ou manual com preceitos e objetivos diretos, de dogmas e verdades axiomáticas, a ser seguida ferrenhamente, como um manual ou um Manifesto do Partido Comunista, mas sim como uma predisposição de ser, de pensar e agir. Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and other Essays, Ed Liberty Fund, Indianápolis, 1991 (pgs 408-409)

Para Edmund Burke, a sociedade será sempre um contrato "entre os vivos os mortos e os que estão para nascer" e o que liga essas gerações são os valores estáveis e as tradições herdadas, que sobreviveram por sucessivas gerações, pois estas encontraram nelas vantagens que aconselharam a sua manutenção, ou seja, são os costumes e as práticas que sobreviveram ao teste dos tempos. Como diz Jhon Kekes, o conservadorismo não conserva tudo, mas apenas os arranjos tradicionais que nos conduzem a uma vida melhor. Práticas que duraram décadas ou séculos devem sua sobrevida à sua adequação prática no contexto social onde elas operam e emergem como fruto dessa vivência. Conforme Roger Scruton pondera, o perigo é a ideia radical de que todas as tradições são invenções, ideias arbitrárias e que, consequentemente, pode-se reinventar, substituir ou até mesmo destruir tais arranjos, práticas e costumes de forma abrupta e impensada, sem consideração sobre o porquê de tal prática existir e ter sobrevivido ao tempo. O estadista, tendo isso por base, tem de governar tendo a clara consciência de que somos inquilinos temporários e, por essa transitoriedade, deve atuar sem caprichos e rompantes, recusando ser um legislador da humanidade. A prudência do estadista deve possibilitar o equilíbrio saudável que é distante da postura de reformismo amplo e desenfreado, bem como distante do total imobilismo, até porque dizia Burke numa célebre frase que "um Estado sem a possibilidade de alguma mudança é incapaz de se conservar". Edmund Burke, "The Works of the Right Honorable Edmund Burke". 6ª ed. Boston, Little Brown and Company, 1880, 12v. (p. 359); John Kekes, "A Case for Conservatism", Ithaca: Cornell Univesity Press, 1998. (p.9) Roger Scruton, "The Meaning for Conservatism". 3ª ed. Basingstroke, Hampshire: Palgrave, 2001 (p. 31)

Para Russell Kirk, um dos maiores expoentes do conservadorismo anglo-saxão do século XX, os dez princípios que delineam o conservadorismo, de forma não tipologicamente fechada, estão contidos em um artigo cujos excertos centrais estão reproduzidos a seguir:

1) O conservador acredita que há uma ordem moral duradoura: "uma sociedade em que homens e mulheres são governados pela crença em um a ordem moral duradoura, por um forte senso de certo e errado, por convicções pessoais de justiça e de honra, será uma boa sociedade - seja qual for o mecanismo político utilizado; enquanto na sociedade, homens e mulheres estiverem moralmente à deriva, ignorantes das norma e voltados principalmente para a gratificação dos apetites, essa será uma sociedade ruim - não importa quantas pessoas votem, ou quão liberal seja a ordem constitucional formal";

2) O conservador adere aos costumes, à convenção e à continuidade: "são antigos os costumes que permite que as pessoas vivam juntas e em paz; os destruidores dos costumes demolem mais do que suspeitam, ou desejam. É por meio da convenção que conseguimos evitar disputas perpétuas sobre direitos e deveres". "Os conservadores são defensores dos costumes, da convenção e da continuidade, porque preferem o mal que conhecem ao mal que não conhecem. Ordem, liberdade e justiça são os produtos artificiais de uma longa experiência social, o resultado de séculos de experimento, reflexão e sacrifício. O corpo social é, dessa forma, um tipo de corporação espiritual" e "a continuidade, o fluido vital de uma sociedade, não pode ser interrompida". Kirk ressalta ainda que "a lembrança, feita por Edmund Burke, da necessidade de mudança prudente está sempre na mente dos conservadores; mas a necessária mudança, argumentam, deve ser gradual e judiciosa, nunca desenraizando antigos interesses de um só golpe".

3) Os conservadores acreditam no que se pode chamar de princípio da consagração pelo uso: "as pessoas na era moderna são anões nos ombros de gigantes, capazes de enxergar muito além dons antepassados apenas por causa da grande estatura daqueles que os precederam". Ressalta, Kirk, que "Nossa moralidade é, em grande parte, consagrada pelo uso. Conservadores afirmam ser improvável que nós, modernos, façamos qualquer descoberta nova e extraordinária em moral, política ou gosto". Dizia Burke que "o indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia" e assim Kirk arremata que "na política, faremos bem se permanecermos fiéis a preceitos e pré-cognições, e até inferências, já que o grande e misterioso grêmio da raça humana obtém, pelo uso consagrado, uma sabedoria muito maior do que qualquer mesquinho raciocínio privado de um ser humano individual".

4) Os conservadores são guiados pelo princípio da prudência: Kirk frisa que Burke e Platão convergem ao dizer que no estadista "a prudência e a maior das virtudes" e que qualquer medida pública "deve ser julgada pelas suas consequências de longo prazo, não apenas por suas vantagens ou popularidades temporárias". O conservador considera que "os esquerdistas e os radicais são imprudentes, pois se lançam impetuosamente em direção aos próprios objetivos, sem dar muita atenção ao risco de novos abusos, ainda piores que os males que querem debelar". Sendo complexa a sociedade humana, "as soluções não podem ser simples, se têm de ser eficazes. O conservador declara agir somente após suficiente reflexão, tendo sopesado as consequências. Reformas rápidas e agressivas são tão perigosas quanto cirurgias rápidas e agressivas".

5) Conservadores prestam atenção ao princípio da variedade: Conservadores se afeiçoam "à complexidade prolífera das instituições sociais há muito estabelecidas e seus modos de vida, em contraposição à uniformidade estreita e ao igualitarismo sufocante dos sistemas radicais". Para que haja uma "diversidade saudável em qualquer civilização, devem remanescer ordens e classes, diferenças na condição material, e muitos tipos de desigualdade", pois "as tentativas de nivelamento levam, na melhor das hipóteses, à estagnação social" e se "as diferenças naturais institucionais entre as pessoas forem destruídas, em breve algum tirano ou alguma sórdida oligarquia criarão novas formas de desigualdade", ou seja, atentar de forma artificial contra as diferenças naturais pode gerar um estado ainda mais agravado de desigualdades arbitrariamente obtidas.

6) Conservadores são disciplinados pelo princípio da imperfectibilidade: a natureza humana é inevitavelmente falha, sabem os conservadores e, portanto, uma ordem social perfeita jamais pode ser criada. Desse modo, "objetivar a utopia é terminar em desastre" e tudo o que se pode almejar, razoavelmente, é "uma sociedade tolerantemente ordenada, justa e livre na qual alguns males, desajustes e sofrimentos continuam à espreita". Quando "as antigas defesas morais e institucionais de uma nação forem esquecidas, irrompe o impulso anárquico no homem" e, arremata Kirk, que "os ideólogos que prometiam a perfeição do homem e a sociedade converteram grande parte do mundo no século XX em um inferno terreno".

7) Os conservadores estão convencidos de que a liberdade e a propriedade estão intimamente ligadas: "Sobre o fundamento da propriedade privada grandes civilizações são erigidas. Quanto mais difundida for a propriedade privada, tanto mais estável e produtiva será a comunidade política". Isso se dá porque "poder conservar os frutos do próprio trabalho; poder ver que o próprio trabalho é duradouro; poder deixar as próprias posses aos descendentes; poder elevar-se da condição natural de uma pobreza opressora à segurança das conquistas permanentes; possuir algo que é realmente seu, são vantagens inegáveis". A propriedade estabelece deveres aos possuidores e ele aceita com satisfação tais obrigações morais e legais.

8) Conservadores defendem comunidades voluntárias, da mesma forma que se opõem a um coletivismo involuntário: o povo americano sempre foi afeito à privacidade e aos direitos individuais, mas também é "notável pelo sucesso de seu espírito comunitário". As tomadas de decisões que mais afetam a vida dos cidadãos são feitas de forma local e voluntariamente, por vezes por instituições políticas, mas também por associações privadas que promovem uma concórdia geral entre aqueles que a integram, constituindo uma comunidade saudável. Quando tais funções são "usurpadas ou transferidas a uma autoridade centralizada, então a comunidade se encontra em sério perigo" e ocorre um "processo padronizante, hostil à liberdade e à dignidade humana". "É a execução de nossos deveres na comunidade que nos ensina prudência, eficiência e caridade".

9) O conservador vê a necessidade de limites prudentes sobre o poder e as paixões humanas: "um Estado em que um indivíduo ou pequeno grupo é capaz de dominar as vontades dos pares sem restrições é despótico, seja chamado de monarquia, aristocracia ou democracia". E quando "cada um pretende ser um poder em si mesmo, então a sociedade cai na anarquia" e à anarquia se sucedem "a tirania ou a oligarquia, nas quis o poder é monopolizado por poucos". Tendo isso em mente, o conservador busca "limitar e equilibrar o poder político, de modo que a anarquia e a tirania não tenham chances de surgir". Restrições "constitucionais, freios e contrapesos políticos, um cumprimento adequado das leis, a velha e intrincada rede sobre a vontade e o apetite são aprovados pelo conservador como instrumentos da liberdade e da ordem".

10) O conservador razoável entende que a permanência e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade vigorosa: " o conservador não se opõe a melhoras sociais, embora duvide da existência de qualquer tipo de força semelhante a um progresso místico, com 'P' maiúsculo, em ação no mundo". Qualquer sociedade saudável é afetada por duas forças que Samuel Taylor Coleridge chamava de permanência e progressão. A primeira é o conjunto de "interesses e convicções duradouros que nos dão estabilidade e continuidade; sem essa permanência, as fontes do grande abismo se rompem, jogando a sociedade na anarquia. A progressão em sociedade consiste naquele espírito e conjunto de talentos que incitam a reforma e a melhora prudentes; sem tal progresso, o povo fica estagnado". Assim, o conservador favorece o "progresso refletido e moderado; opõe-se ao culto do progresso, cujos devotos acreditam que tudo novo é necessariamente superior ao que é antigo". O conservador trata de que em uma sociedade "nada seja totalmente velho ou totalmente novo. Essa é a maneira pela qual se conserva uma nação, da mesma forma que se conserva um organismo vivo". O grau de mudança e de permanência irá sempre depender das circunstâncias de determinada época ou nação.

Kirk Russel, A Política da Prudência, Ed. É Realizações, 2013 (pg 103)

O conservadorismo também apresenta uma noção crítica ao racionalismo moderno, a defesa de que o único conhecimento válido é o "conhecimento técnico" que tem uma pureza ou grau de verdade que o que o conhecimento prático ou tradicional não comporta. Essa crítica à filosofia da vaidade, ou a vaidade do otimismo racionalista, como dito por Burke e Tocqueville, dentre outros, busca recentrar a discussão sobre a análise política na questão da existência inevitável da imperfeição intelectual dos seres humanos. Como ressalta Robert Merton, no clássico ensaio sobre as consequências imprevistas da ação social, há limitações epistemológicas óbvias, seja na própria análise de cenário, no delineamento subsequente de soluções ou na própria operacionalização prática destas soluções. O próprio Merton ressalta, ainda, o problema da própria ocorrência de consequências fortuitas que escapam totalmente ao controle do decisor político, isto é, conhecimento que não possuímos (que não se pode obter antecipadamente) e que podem, assim, subverter as mais nobres intenções.

Merton Robert K. "The Unanticipated Consequences of Social Action" in Sociological Ambivalence and other Essays. Nova York: Free Press, 1976. (pg 145-155)


No que tange à estabilidade ou ordem oral duradoura, Edmund Burke, influenciado provavelmente por Adam Smith e sua Obra da Teoria dos Sentimentos Morais, chama os valores básicos e fundacionais de de sentimentos naturais - naturais porque brotam da nossa natureza comum sempre que nos confrontamos com situações de injustiça ou iniquidade. "Uma Providência gentil fez repousar sobre o nosso peito um ódio à injustiça e à crueldade" e outros diversos autores também ressaltam essa questão, como Quintin Hogg ao abordar as "decências fundamentais da vida", Hugh Cecil ao tratar das "obrigações da justiça" ou ainda Kekes ao dizer os "valores primários, universais e objetivos requeridos por todas as vidas boas", na obra "A case for conservatism". Esses valores mínimos não prescrevem precisamente o que os indivíduos devem fazer, mas sim o que eles não devem nem podem fazer. Esse sentimento de desgosto moral, perante injustiças, é tão inerente ao ser humano e como ressalta Roger Srcuton, não pode ser eliminado por nenhum governante, via processo de reeducação, mas sim o máximo que se pode fazer é algum déspota tentar proibir a expressão pública desses sentimentos.

Edmund Burke, "The Works of the Right Honorable Edmund Burke". 6ª ed. Boston, Little Brown and Company, 1880, 12v. (p. 28); John Kekes, "A Case for Conservatism", Ithaca: Cornell Univesity Press, 1998; Roger Scruton, "The Meaning for Conservatism". 3ª ed. Basingstroke, Hampshire: Palgrave, 2001 (p. 13)

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