“A melhor oportunidade que o mundo já teve foi desperdiçada porque a obsessão pela igualdade frustrou as esperanças de liberdade”. – Lord Acton
Uma das objeções mais comuns à concorrência é que ela é "cega". Para os antigos, convém lembrar, a cegueira era atributo ou qualidade da deusa da justiça e, apesar de concorrência e justiça terem a priori pouco em comum, ambas são elogiadas justamente por não discriminarem entre as pessoas. Há algo de valor na imprevisibilidade e impessoalidade de quem será bem-sucedido ou fracassará não por juízos de valor subjetivos, mas sim por capacidade, por esforços e, parcialmente, também pela sorte de cada um, tal qual é também valoroso que na feitura das leis não se saiba, de antemão, quem em particular sairá ganhando ou perdendo com a sua aplicação - o atributo da impessoalidade. Não saber quem são os vencedores ou perdedores de antemão é algo positivo.
É sabido que o regime de concorrência não é algo absoluto e perfeito, porém ao passo em que nele habilidades, esforços e comportamentos individuais podem ser fatores determinantes para se alcançar o sucesso, parece-nos algo muito superior a um regime em que a simples vontade arbitrária de poucos - pertencentes uma elite política de “iluminados”- decidirá a quem caberá isto ou aquilo, como é nos regimes coletivistas (comunismo e socialismo).
Muito se argumenta também que no regime de concorrência as oportunidades dos pobres, comparadas às dos ricos, são desiguais e menores, o que é um fato. Porém, nesse regime as camadas mais pobres têm uma liberdade de ação e um conforto material muito superior do que nas sociedades socialistas, por exemplo. Não é por acaso que há uma tendência irrefreável e duradoura de migrações que obedecem a um nítido padrão: pessoas saindo de países pouco livres para países com maior grau de liberdade econômica.
Como bem observa Hayek, um trabalhador não especializado e mal remunerado tinha, na Inglaterra na década de 1940, mais liberdade de escolher o rumo da sua vida do que muitos pequenos empresários na Alemanha Socialista, ou do que um engenheiro ou gerente de empresa supostamente muito mais bem pago na Rússia. A liberdade de agir e decidir seu futuro e influir no futuro de sua família é, decerto, muito maior no caso do trabalhador inglês, bem como o exercício até mesmo de liberdades como a de mudar de emprego, de residência ou a de expressar opiniões políticas. Não há perigos à sua integridade física ou amarras que lhe prendam indelevelmente ao seu trabalho, como certamente há nos regimes coletivistas.
Sob um pretexto de criar maior igualdade entre os cidadãos, defende-se, nos regimes coletivistas, via planejamento central, que o Estado detenha os meios de produção por uma suposta delegação do povo. Porém, não se percebe que isso na realidade não delega poder (pois tal delegação nunca existiu em um regime que é por natureza ditatorial), mas sim cria um novo ente com poderes tão concentrados como nunca se viu em qualquer sociedade onde impere a livre concorrência. Enquanto no regime de concorrência há uma dispersão de poder e de ação (política e econômica), de modo que nenhum ente seja suprapotente e possa determinar o futuro de cada indivíduo como bem quiser, no regime de planejamento central, por seu turno, a concentração é tamanha que o Estado tudo determina e pode fazê-lo (como frequentemente faz) de forma puramente arbitrária. E o resultado final tende a ser uma igualdade maior, na extrema pobreza, entre o povo e uma desigualdade patente destes em relação aos detentores do poder, como os altos burocratas do partido comunista e da nomenklatura e os próprios ditadores. À elite tirana tudo, ao povo quase nada.
Hayek alerta para o óbvio: “nossa geração esqueceu que o sistema de propriedade privada é a mais importante garantia da liberdade, não só para os proprietários mas também para os que não o são”. Eis o ponto crucial e evidente: quando os meios de produção estão espalhados sob a propriedade privada de milhares ou milhões de indivíduos, ninguém é capaz de obrigar um cidadão qualquer (rico ou pobre) a algo que ele não queira fazer.
Defensores do planejamento central por vezes dizem que “decidir a participação de cada indivíduo na renda nacional envolve dificuldades políticas e sociais tão evidentes que até o mais inveterado planejador hesitará antes de encarregar qualquer autoridade dessa tarefa”. Logo, concluem, que é possível e até desejável deixar a distribuição da renda tanto quanto possível a supostas forças impessoais, executando uma utópica organização racional da produção. Porém, dada a interdependência dos fenômenos econômicos, dada a situação que nenhuma ação estatal (sobretudo econômica) pode ser posta em prática sem que ocorram consequências imprevistas e indesejáveis, o burocrata planejador será perenemente forçado a ampliar seus controles e o grau de suas intervenções até abrangerem todos os aspectos da vida de uma sociedade.
Bem observa Hayek que à medida em que as reais desigualdades percebidas (em um regime coletivista) são geradas não mais por fatores impessoais da livre concorrência, mas sim por decisões arbitrárias e intencionais de uma supra-autoridade, mudam as opiniões favoráveis sobre o regime coletivista, tal qual ocorreu em todo e qualquer regime comunista, pois a pobreza impera para o povo, mas não para a alta elite. Porém, em um regime sem liberdade não há como reclamar, insurgir-se ou até mesmo dali migrar. É um regime de servidão ou mesmo escravidão. Eis o inferno (vendido como paraíso) que os regimes de planificação central sempre entregam, sem exceções.
Por mais amarga que seja uma experiência de desemprego, durante as flutuações econômicas que sempre existem e sempre existirão em um regime de liberdade, decerto que essa será sempre mais humana e amena do que a experiência de um regime autoritário que concede privilégios à casta burocrata e oferece miséria aos demais cidadãos. Enquanto em um regime de liberdade o indivíduo consegue se realocar no mercado de trabalho depois de certo tempo, em um regime de planejamento central basta um deslize ou incômodo causado aos governantes ou ao vaidoso e poderoso burocrata para que se passe de um regime de semi-escravidão para um real regime de escravidão em algum gulag ou outro campo (prisão) de trabalho forçado congênere. E ainda assim, muitos militantes comunistas têm a audácia de dizer que defendem a liberdade, ao defender o comunismo ou o socialismo.
Hayek expõe o âmago da dualidade entre economia e política que, em um regime de planejamento central, são absolutamente consubstanciados, são os dois lados inextricáveis de uma moeda. Ele pondera que “assim que o Estado assume a tarefa de planejar toda a vida econômica, o problema da posição dos diferentes indivíduos e grupos torna-se inevitavelmente a questão política predominante. Como só o poder coercitivo do estado decidirá a quem cabe isto ou aquilo, o único poder efetivo e desejável será a participação no exercício desse mesmo poder. Não haverá questão econômica ou social que não seja também uma questão política, no sentido de que a sua solução dependerá exclusivamente de quem manejar o poder coercitivo, daqueles cujas ideias estiverem predominando”.
A famosa expressão “Quem a Quem” atribuída a Lenin, como uma síntese do problema universal que uma sociedade socialista deveria atravessar, retrata exatamente a questão: quem planeja a vida de quem? Quem deve estar em cada posição no aparato produtivo, quem deve receber o que e de que forma? Em certo grau, todo governo tem algum grau de influência sobre as nossas vidas, porém, no socialismo esse poder é praticamente completo.
Decerto que o governo de planejamento central pode ter algum objetivo declarado de realizar uma política de justiça redistributiva. Mas como de fato se orientará na prática? Que princípios seguir? Como conciliar, da melhor forma possível, os interesses conflitantes que existirão? A única regra que pode ser imposta de maneira a suscitar uma equidade maior e impessoal, universal, é atribuir igualdade de renda e de condições materiais a todos. Porém, a prática demonstrou que não é isso que os homens querem, dado o fato de que em regimes democráticos, onde há liberdade portanto, esse ideal de uma suposta igualdade plena nunca encontrou qualquer apoio sério ou majoritário.
Alguns falam, então, de uma igualdade não mais absoluta, mas sim de se diminuir as desigualdades, como objetivo do socialismo, para promover o bem comum ou o bem-estar social. Porém, o complexo problema do planejador econômico ainda subsiste. O que é o preço justo ou o salário razoável para uns não é o mesmo do que para outros. Mais ainda: o rendimento de uma indústria nunca será exatamente o mesmo que de outra, de modo que o problema do redistributivismo adquire ainda maior complexidade ao ser colocado em prática. Ademais, dentro de cada profissão ou ofício existem grandes disparidades de habilidades e capacidades entre indivíduos, de modo que é um problema deveras complicado de se resolver, sob um parâmetro de justiça ou equidade redistributiva, seja no nível micro ou macro, dadas essas premissas da realidade prática.
Como bem apontara Stuart Mill, sobre a questão da igualdade, “poder-se-ia admitir uma regra fixa, como a da igualdade, ou a sorte ou uma necessidade externa; mas seria intolerável que um punhado de seres humanos pesasse todos na balança, dando mais a este e menos àquele a seu bel-prazer ou segundo o próprio critério de julgamento, a não ser que se tratasse de indivíduos considerados super-homens e apoiados em poderes sobrenaturais”. Ora, seres humanos, em sua imensa maioria, não são adeptos dessas ideias de igualdade e equidade ditadas por uma elite governante, pois no fundo sabemos que todos são diferentes e que é melhor a diferença em um regime liberdade ao arbítrio de tiranos no poder, regulando “quem a quem” cada aspecto de nossa existência.
A utópica ideia de que é possível amalgamar e uniformizar as opiniões da coletividade sempre foi um fetiche dos coletivistas. Aliás, foi tentando criar movimentos de massas que se amoldassem à essa concepção única de mundo que os socialistas conceberam a maioria dos instrumentos de doutrinação usados com tamanha eficácia pelos nazistas e fascistas. A ideia de um partido que de tudo cuidasse, do berço ao túmulo dos indivíduos, e que pretendesse orientar todas as suas concepções de mundo foi colocada em prática pelos comunistas e em boa parte copiada logo após pelos nazifascistas.
Mais ainda, como bem aponta Hayek: “não foram os fascistas, mas os socialistas, que começaram a arregimentar as crianças desde a mais tenra idade em organizações políticas para garantir que elas se tornassem bons proletários”. Foram também eles os primeiros a criar experiências de vivência coletiva (jogos, esportes, clubes, passeios a pé etc) em que os membros do partido ficassem isolados de qualquer contágio por outras ideias alternativas. E foram eles que criaram o mecanismo de células e organizações secretas para fiscalização permanente da vida privada.
O problema do socialismo, de tentar harmonizar os interesses dos diferentes grupos sociais via doutrinação e uso da força é um ponto que não só mina a eficiência de uma economia, mas a própria noção de coesão social e organicidade de uma sociedade. E o simplismo da dicotomia “operários versus capitalistas”, peça angular da teoria marxista, encontrou óbices no campo da realidade fática. Enquanto se imaginava (no plano puramente teórico) o desparecimento de uma antiga classe média, no novo regime, o fato é que houve uma ascensão de uma nova classe média, “o incontável exército de escrituramos e datilógrafos, funcionários administrativos e professores, varejistas e pequenos burocratas e as camadas inferiores das profissões”. Esse segmento, até então fonte ou celeiro de líderes trabalhistas-sindicalistas com simpatia pelo ideal socialista, perdeu a simpatia por esses ideais outrora tão prezados, à medida em que foi tendo suas condições deterioradas e se aproximaram dos operários. O que fora entregue era muito pior do que lhes fora prometido.
Promover a ascensão de um grupo socioeconômico é uma manobra que foi por vezes tentada, porém esses movimentos não permitem alcançar a adesão de todos, ensejando outras facções de movimentos sindicalistas para correr atrás do que o outro grupo alcançou, alimentando de forma crescente as rivalidades. No decorrer dos anos em que o regime socialista ia se desenvolvendo e aprofundando, os líderes não conseguiam entender o porquê de cada vez mais numerosos grupos, sobretudo das classes operárias médias-baixas e baixas (que eles diziam defender), tornavam-se ressentidos e contra as políticas e vigor, mas não é grande surpresa que isso tenha acontecido.
Por fim cabe refletir sobre o fato de que ambos os movimentos autoritários, nazista e fascista, à luz do que já ocorrera na experiência socialista, não se iludiam pensando que todos os interesses dos diferentes grupos pudessem ser conciliados e um modelo com boa dose de planificação econômica, como eles colocaram em prática. Sabiam também que a igualdade não era a solução. Mas foram bem-sucedidos em sua ascensão ao poder, inicialmente via mecanismos com aparência de democráticos, porque ofereceram a uma classe numerosa uma teoria, uma concepção de mundo que parecia justificar os privilégios àqueles que se tornassem seus adeptos.
Como lição a ser extraída, sempre devemos desconfiar fortemente de quem, para subir ao poder ou permanecer nele, fale muito mais em direitos do que em deveres, fale muito mais sobre o Estado sendo o gestor, o fornecedor e o solucionador dos problemas materiais e/ou sociais de grupos ou categorias específicas, pois, na realidade, os indivíduos podem fazer muito mais do que o Estado. Como dizia a célebre frase atribuída a John F. Kennedy “não pergunte o que seu país pode fazer por você - pergunte o que você pode fazer por seu país”. O caminho do indivíduo e da sociedade com seus pequenos pelotões, como dizia Edmund Burke, e com a livre inciativa e associação, em entidades civis não-governamentais, tão bem percebida e retratada por Tocqueville em “A democracia na América”, são testemunhos e inspirações para que uma sociedade possa se desenvolver de maneira saudável rumo à prosperidade material e humana. Mais do que isso, evidenciam que não cabe ao Estado tudo definir na economia e na vida das pessoas (“quem a quem”), pois abrir mão disso é algo imoral e até mortal. Uma sociedade que assim o faz fica sob risco iminente de embarcar em desastres econômicos, espirituais e humanos, como foram, sem sombra de dúvidas, as experiências socialistas e o nazifascismo.
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