“Estudos recentes sobre que o princípio básico da Sociologia do Direito confirmam, mais uma vez, que o princípio básico do Direito formal – pelo qual cada caso deve ser julgado de acordo com preceitos gerais racionais que admitam tão poucas exceções quanto possível e se baseiem em assunções lógicas – só se aplica a fase liberal do capitalismo, em que imperava o regime da concorrência”. – Karl Mannheim
Um país livre se distingue de um submetido a um governo arbitrário pela observância dos princípios do Estado de Direito. Isso implica que todas as ações do governo são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas, permitindo que as pessoas planejem suas atividades individuais com base no conhecimento dessas regras do jogo. Embora esse ideal nunca seja totalmente alcançado, devido à falibilidade dos legisladores e dos aplicadores da lei (pois são seres humanos e a realidade é complexa), fica clara a necessidade de, por meio da lei votada no parlamento, reduzir o arbítrio concedido aos órgãos do Executivo, que por vezes podem, por meio de sua tecnocracia, decidir de forma discricionária e sem tantos controles pelo povo.
Sob o estado de Direito, o governo não pode anular os esforços individuais com ações ad hoc, o que garante que os poderes governamentais não sejam usados para prejudicar ou favorecer os esforços do indivíduo A, B ou C ou da empresa X, Y ou Z. Essa distinção se aplica também à gestão das atividades econômicas, onde, sob o Estado de Direito, o governo estabelece normas para o uso dos recursos disponíveis, enquanto os indivíduos decidem os fins específicos e concretos para os quais tais escassos recursos serão aplicados.
Porém, sob o estado de um regime coletivista, sob um regime arbitrário como o Socialismo ou o Nazifascismo, o governo direciona os recursos de forma direta, para finalidades específicas. Enquanto em um regime livre as regras se aplicam por períodos longos e de forma preponderantemente indistinta, existindo um rule of law, no regime coletivista as regras são operacionalizadas para atender a necessidades específicas, sujeitas, portanto, a discricionariedades, a conflitos de interesse, a corrupção e a manifesta ineficácia, como resultado geral.
O governo coletivista tem, portanto, um papel de direcionador direto dos esforços produtivos e isso dificulta a própria existência de um mecanismo de regras estável e formal, bem como da liberdade dos indivíduos. Como bem pontua Hayek, “Quando o governo tem de resolver quantos porcos é necessário criar, quantos ônibus terão de ser postos em circulação, quais as minas de carvão a explorar ou a que preço serão vendidos os sapatos, essas decisões não podem ser deduzidas de princípios formais nem estabelecidas de antemão para longos períodos”. E quando tamanho poder absoluto está concentrado na mão de poucos, o caminho para a injustiça, compadrio e patrimonialismo da nomenklatura, está mais do que propício e pavimentado. É algo que fatalmente ocorrerá, como sempre ocorreu, onde quer que tenha havido um regime comunista ou nazifascista.
Normas formais, em um Estado de Direito liberal, são estabelecidas de maneira impessoal e constituem uma orientação, definida em termos gerais, sem referência a tempo e lugar nem a objetivos e indivíduos em particular, isto é, não podemos saber de antemão por quem e de que modo serão usadas. A existência de regras estabelecidas desse modo, que confere mais previsibilidade jurídica e econômica, é essencial para que os indivíduos possam então traçar seus próprios planos e alcançar seu sucesso, independentemente do Estado e de relações espúrias com seus agentes oficiais. É um modo em que há a realização prática da justiça, de um fair-play, da melhor forma que é humanamente possível.
Hayek é conhecido pela afirmação de que o conhecimento está disperso pela sociedade e esse é um ponto nuclear nessa discussão sobre a superioridade do Estado de Direito em uma visão liberal. A razão pela qual o Estado deve limitar-se a estabelecer normas aplicáveis a situações gerais, deixando os indivíduos livres em tudo que depende das circunstâncias específicas de tempo e lugar, se dá justamente porque somente os indivíduos poderão conhecer plenamente as circunstâncias relativas a cada caso e a elas adaptar suas ações. O indivíduo empreendedor (e também consumidor) conhece mais sobre a realidade do mercado local onde mora do que um burocrata isolado em um gabinete de repartição pública à centenas ou milhares de quilômetros de distância. O Estado não apenas é um péssimo conhecedor das realidades individuais e locais, por não constituir um ente onisciente, como fatalmente agirá de modo patrimonialista ao ter poder arbitrário em demasia. Já dizia Lord Acton que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.
Mais do que isso, sob um Estado coletivista, as regras não apenas não detêm a qualidade de serem gerais e impessoais, bem como são muito mais mutantes, pois o Estado tem de (re) definir a todo momento as prioridades, em face das mudanças de cenários. Diante de regras que mudam a todo momento, as ações de planejamento econômico se tornam difíceis, senão impossíveis, sobretudo as de médio e longo prazo, que tendem a ser mais estruturantes e determinantes para alterar a realidade econômica para melhor, para gerar ciclos de crescimento de renda e emprego robustos e não meros vôos de galinha, como é usual na história do Brasil, por exemplo. A nossa imprevisibilidade econômica, decorrente de uma insegurança jurídica e de uma visão socialista-coletivista de Estado, sempre foi uma marca da história econômica de nosso país.
Quando o Estado quer atuar de forma a coordenar e intervir na atividade produtiva, ele não pode agir sem considerar a liberdade de ação dos indivíduos e a sua atitude de reação e, por isso, para que o Estado possa arbitrar e decidir como bem quer, tem de necessariamente impor várias situações a todo momento para os indivíduos e empresas, via aparato legal que é mutável e desce às minúcias, de forma discricionária e autoritária. Diferentemente de um legislador imparcial, que faz a lei sem ter em mente quem será direta e concretamente afetado, o governo coletivista tem a faca e o queijo na mão e pode determinar quem serão os vencedores e os perdedores, a todo momento e sem oposição, sem possibilidade de controle efetivo (direto ou indireto) pela sociedade. O Instrumento legal torna-se uma forma de absoluto controle sobre o povo e não mais uma expressão dos desejos deste. O Estado, nesse tipo de regime, passa da posição de um arbitrador neutro de conflitos para a de ente moralista, que define os destinos sob uma (pseudo) aura de defensor do interesse comum.
Alguns defensores da ideia de planejamento econômico pelo Estado tentam argumentar que é possível obter uma posição que seja tida por justa e razoável, para harmonizar os interesses dos afetados pela legislação. Porém, esse argumento costuma ser míope, oriundo de pessoas que conhecem apenas a realidade do seu setor econômico, não considerando que em um planejamento de largo escopo, como o de tocar o setor produtivo de uma sociedade inteira, há uma infinidade de interesses conflitantes e antagônicos que o Estado tem grande poder para arbitrar e, portanto, não só é uma tarefa deveras complexa (até impossível) como também sujeita a fatais confusões de interesses públicos e privados.
Hayek pontua que essa noção de oposição ao coletivismo e de defesa do Estado de Direito sob uma concepção liberal é também deveras importante porque a própria Alemanha Nazista já vinha demonstrando sinais de degradação do Estado de Direito, antes mesmo da subida de Hitler que, vendo tal clima se descortinando, soube aproveitar a oportunidade e ascendeu para completar a missão de fazer ruir o mecanismo institucional legal já debilitado.
No que tange ao desenvolvimento das sociedades, nos últimos 400 anos, com a ascensão do modelo liberal e a aniquilação de um modelo aristocrático e estamental, Sir Henry Maine dizia que “tem sido até agora uma evolução da sociedade baseada no status para a sociedade baseada no contrato”. Ou seja, se antes a sociedade se estabelecia em castas e posições de nobreza que conferiam status ao seu pertencente, agora a sociedade é baseada em liberdade de pactuação, de decisão de estabelecer contratos, empreender e prosperar, com a ascensão do Estado de Direito com acepção liberal. Tal estado de Direito, mais do que um regime de contrato, per se, é uma verdadeira antítese do antigo regime feudal de status. Como Hayek bem pontua, “o estado de Direito, no sentido de regime de Direito formal – de não-concessão pela autoridade de privilégios legais a determinados indivíduos – salvaguarda a igualdade perante a lei, que é a antítese do governo arbitrário”.
É necessário entender, como decorrência lógica, que sistemas redistributivistas que buscam conferir mesmo resultado econômico a indivíduos diferentes, acaba sendo contrário à própria concepção basilar do que é um Estado de Direito Liberal. É inegável que em um Estado de Direito existirá sempre alguma desigualdade econômica, porém, ela não é criada intencionalmente pelo Estado visando atingir o indivíduo A ou B, mas sim fruto das próprias e diferentes habilidades, aptidões e esforços que cada indivíduo carrega. A todo momento, decisões virtuosas podem (ou não) serem tomadas e como o juízo e as aptidões são distintas, os resultados têm de ser necessariamente distintos. Como diz o aforismo atribuído ao autor do famoso livro Arquipélago Gulag, Aleksandr Soljenítsyn, “se os indivíduos são iguais eles não são livres e se eles são livres eles não são iguais”. A desigualdade de resultados é o estado natural em um sistema com liberdade de escolha.
Hayek pondera também sobre o significado da palavra privilégio e de como foi desvirtuada ao longo do tempo, com a ascensão dos ideais de redistributivismo. Privilégios são situações, como ocorriam antes do advento liberal, em que a propriedade da terra ou de outros bens fosse reservada aos membros da nobreza. Nos tempos modernos, privilégios poderiam ser também o direito exclusivo para alguns indivíduos ou para o Estado, de comercializar determinados bens ou serviços ou, ainda, créditos subsidiados para empresas amigas, via BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), por exemplo. Note que a força da mão do Estado é o ponto determinante para determinar o que é um privilégio, pois tais benefícios a apenas grupos sociais específicos é concedido pelo Estado. Por outro lado, chamar de privilégio a propriedade privada em si, que todos são livres para adquiri-la segundo as mesmas normas em uma sociedade, apenas porque alguns conseguiram adquiri-la e outros não, é baratear o debate e simplesmente destituir por completo o real sentido desse termo - a famosa prática da novilíngua em ação.
A ideia central que precisa ser entendida é a de que o Estado de Direito não é apenas um sistema em que há um mecanismo formal, institucional-processual, por meio do qual estabelece-se o arcabouço legal de uma sociedade. O Estado Nazifascista, bem como o Comunista, tinham esses mecanismos para conferir uma certa aura de justiça e legalidade a decisões manifestamente arbitrárias dos seus ditadores. O que precisa ficar claro é que o modo como se concebe e se aplica a lei, da forma mais impessoal possível, sem conceder tratamento diferenciado a indivíduos em igual situação ou sem corriqueiras alterações substanciais, mas sim aperfeiçoamentos gradativos, é que de fato consubstancializa o Estado de Direito na acepção liberal.
O problema dos tempos modernos é que muito do que se estabelecera como fundamento de um modelo liberal está sendo diretamente atacado e esfacelado, em completa desconexão com os conceitos originais. Fala-se em respeitar direitos dos homens, direitos individuais, ao mesmo tempo em que se prega que o Estado tenha maior peso e possa intervir mais e mais na economia. Hayek cita que a até a revista The Economist, de tradição supostamente liberal, louvava o exemplo dos franceses como o único povo que tinha aprendido que “o governo democrático, não menos que a ditadura, deve sempre [sic] ter poderes plenos in posse, sem sacrificar o seu caráter democrático e representativo. Não existe esfera de direitos individuais que, tratando-se de assunto administrativo, o governo não possa tocar em nenhuma circunstância. Não se pode nem se deve limitar o poder de um governo livremente eleito pelo povo e sujeito a plena e aberta crítica da oposição”.
Como ressalva Hayek, a experiência histórica dos vários países da Europa Central “demonstrou amplamente até que ponto a admissão, ainda que apenas formal, dos direitos individuais ou da igualdade de direito das minorias perde todo o valor num estado que empreende o controle integral da vida econômica”. Quando a vontade dispersa de uma multidão de indivíduos é colocada de lado e ignorada, por efeito do planejamento econômico central, direitos individuais e direitos do homem tornam-se meros adornos, meras palavras decorativas desprovidas de real substância, insculpidos em diplomas legais de um pseudo e falido Estado de Direito a serviço de ditadores e de castas burocráticas como a nomenklatura. Eis a única coisa que o planejamento econômico central é realmente capaz de entregar.
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