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Guilherme Veroneze e Thiago Manzoni

Capítulo 5 - Planificação e Democracia - O caminho da servidão - Hayek

“O estadista que pretendesse ditar aos indivíduos o modo de empregar seu capital não somente assumiria uma sobrecarga de cuidados desnecessários como se arrogaria uma autoridade que não seria prudente confiar a conselho ou senado de qualquer espécie, e que jamais seria tão perigosa como nas mãos de um homem insensato e presunçoso a ponto de julgar-se apto a exercê-la”. – Adam Smith Sistemas coletivistas (seja comunismo ou fascismo) têm grande primazia ou estima pela noção de organização intencional das atividades da sociedade, tendo por base algum objetivo social definido ou finalidade única. Criticam, portanto, a visão de que o mundo não pode ter seu funcionamento deixado ao sabor dos caprichos e do arbítrio de indivíduos irresponsáveis. É neste ponto em que claramente o coletivismo entra em conflito com a liberdade individual.


O tal propósito almejado que buscam atingir, para o qual (des) organizarão a sociedade por inteiro desprezando a soberania do indivíduo, é sempre definido em termos bastante genéricos e abstratos como o “bem comum”, “bem-estar geral” ou “interesse comum”. Fica visível que a forma absolutamente vaga como que definem os objetivos que deveriam amalgamar uma sociedade é insuficiente para determinar uma linha coerente e concreta de ação sobre ela.


Inexiste no mundo uma escala única de valores, bem como a felicidade pode ser entendida ou percebida de diferentes formas por diferentes indivíduos. Mais do que isso, o Estado é incapaz de adivinhar ou mesmo harmonizar as distintas preferências e valores que cada indivíduo atribui a cada elemento da vida social. Agimos de formas distintas até mesmo em relação a nós mesmos, pois nossas preferência e desejos mudam ao longo do tempo, de modo que a ideia de um plano unitário totalizante, que chegue a um denominador comum perfeito de uma sociedade é impraticável.


Essa suposição de que pode existir um conjunto de valores único, em uma sociedade, um código ético ou escala que orientaria a ação de todos e a possibilidade de planejamento pelo Estado é simplesmente vã. Nós somos seres essencialmente inter-relacionais e os nossos interesses dizem respeito a nós, mas também, por vezes, aos nossos semelhantes mais próximos e, mesmo assim, o grau com que isso se manifesta - de acordo com o nível de egoísmo ou altruísmo de cada um - também se descortina de forma mutável, tanto de indivíduo para indivíduo, como na escala do tempo, a partir das experiências que vivemos, se temos descendentes ou não, onde estamos posicionados profissionalmente etc. Vivemos em uma realidade caleidoscópica de preferências e valores.


Os objetivos dos seres humanos são, portanto, diversos e por vezes conflitantes ou concorrentes, bem como os recursos econômicos para realizá-los são escassos e as relações humanas complexas, heterogêneas e bastante numerosas. Logo, uma supraentidade é simplesmente incapaz de apreender, dominar e harmonizar toda essa miríade de aspectos, bem como de valorar de acordo com o que cada indivíduo atribui de valor para si. Não existe um corpo onisciente e iluminado capaz de solucionar e harmonizar essa complexidade realidade.


Logo, diante dessa incapacidade e dessa multiplicidade de preferências, objetivos e opiniões, o indivíduo é quem deve ser o soberano para fazer suas próprias escolhas, pois ele é quem sabe onde o seu calo aperta, quais objetivos de curto, médio ou longo prazo tem pela frente, quais forças ou fraquezas ele detém, quanto valor atribui a cada caminho que se descortina potencialmente à sua frente, seja em uma perspectiva de o que comprar, onde estudar, onde residir, onde irá empreender seus esforços produtivos e laborais, com quem se relacionar e como exercitar a arte de bem viver a sua vida, com a responsabilidade individual inerente que isso implica.


Decerto que essa visão que dá primazia ao indivíduo não nega em absoluto a existência de possíveis fins sociais, fruto de uma convergência de opiniões dos indivíduos em prol da consecução de objetivos que eles tenham em comum, como alguma causa humanitária, por exemplo. Contudo, essa ação conjunta tem de ser voluntária, pacífica, espontânea, tem de brotar do livre querer dos indivíduos. Não deve simplesmente brotar da cabeça de “iluminados” planejadores autoritários. Como o próprio pai do conservadorismo moderno, Edmund Burke, falava, é nos pequenos pelotões (família, igreja, amigos, parentes, vizinhos e até em diversas formas de associações civis), com relações orgânicas criadas de baixo para cima, que se associam de forma espontânea, é que formamos laços duradouros e genuínos, é ali que estabelecemos tradições comuns, verdadeiramente compartilhadas pelos seus membros.

Hayek bem pontua, o que tange à planificação, que conforme se amplia o escopo ou área de atuação e intervenção estatal, maior tende a ser o grau de opiniões divergentes, isto é, ao agir para regular a abarcar cada vez mais aspectos da vida em sociedade, maior será o grau de dissenso existente, pois isso afeta cada vez mais indivíduos em mais esferas potenciais. Daí que um Estado que queira de fato agir nesse sentido é incapaz de entregar o que promete, dado o crescente dissenso que gera na sociedade, e tem de passar a operar de forma autoritária, para poder então impor sua vontade e eliminar os “entraves” (o dissenso e a oposição), até mesmo fisicamente se necessário.


Daí se extrai que o Estado que tem como base uma concepção verdadeiramente democrática e liberal, respeitador da soberania dos indivíduos, tem de atuar sempre com muita parcimônia, de forma limitada, de modo a não restringir em demasia (ou no extremo aniquilar) a liberdade individual. Pequenos incrementos no dirigismo podem acelerar a guinada à antessala da ditadura (autocracia) e com o tempo levar de fato à ditadura propriamente dita. O preço da liberdade é a eterna vigilância, diz o conhecido adágio.


Outra ponderação de Hayek também é relevante: quanto mais o Estado domina e orienta a alocação de recursos econômicos e a vida moral em sociedade, mais os indivíduos serão aniquilados e viverão como reféns mentais e até reais de uma dita visão estatal dominante que não reflete em nada a vida social orgânica, mas sim as opiniões de uma classe dirigista, de uma “nomenklatura” ou do partido, tal como em um regime típico do clássico 1984, de George Orwell. Servidão ou escravidão seriam, portanto, sinônimos precisos desse modo de vida.

Um outro risco que Hayek levanta é que mesmo em sociedades com parlamentos e uma democracia estabelecida, quando o governo tenta introduzir medidas de escopo demasiadamente amplo e intervencionista, com a visão de planejamento da atividade econômica e social, o consenso, pelo exposto anteriormente, torna-se impraticável e um descontentamento com as instituições democráticas torna a ocorrer. Isso por vezes leva o governo a jogar a culpa no parlamento (e não em si mesmo), tachando-o como um local de debates inúteis e improdutivos. Com isso, tem-se um terreno fértil para se defender que esses tipos de decisões não sejam então mais submetidas ao parlamento, mas sim serem decididas por altos burocratas técnicos e “independentes”. Mais: medidas de força por vezes podem ser tomadas, passando do esvaziamento de competências legislativas até à própria dissolução do parlamento. Qualquer semelhança com a era Vargas, no Brasil, por exemplo, não seria mera coincidência.


Hayek cita Harold J. Laski, Sidney e Beatrice Webb como exemplo de acadêmicos socialistas que acusaram o Parlamento como um mecanismo institucional atrasado, um obstáculo a ser vencido, para que as medidas Socialistas pudessem triunfar. Ora, de fato o Parlamento constitui um fórum de debate e de decisão que serve justamente para isso: para coibir os excessos do Poder Executivo, essa é uma de suas funções precípuas. Isso não deve ser encarado como um demérito, mas sim um mérito. Para os socialistas, porém, a institucionalidade não importa, mas sim apenas o poder.


Ora, essa corrente de estudiosos (mesmo se bem-intencionados) que quer desqualificar a imagem do Parlamento não consegue compreender que não é o aparato em si que tem problemas, mas sim que é demasiadamente pueril imaginar que um ente colegiado, por melhor que seja, seria capaz de uma tarefa de tamanha envergadura que se assemelha a debater e decidir a gestão total ou altamente substancial dos recursos do país. Acreditar que haverá uma opinião majoritária em qualquer matéria submetida ao parlamento e, principalmente, que tal opinião será convergente com o Executivo, é algo simplesmente pueril. Ademais, não decidir sobre essas matérias (rejeitar tacitamente) ou rejeitar expressamente tais proposições planificadoras do Executivo também constituem decisões, em si. É legítimo, é do jogo institucional. Não saber perder é um problema para os socialistas… E a decisão de rasgar a institucionalidade e se passar a delegar as decisões a planejadores “técnicos”, em vez de a parlamentares, apenas demonstra como nada tem de democrático um regime coletivista, tal como foi, na prática, o nazifascismo e o socialismo, nas diversas vezes em que este foi tentado, sempre com os mesmos resultados em tragédia humana e autoritarismo.


Hayek alerta para o perigo de quando o debate de narrativas chega no patamar em que a sociedade passa a clamar por um “ditador econômico”, como se o Estado pudesse ser um ente redentor que resolveria todos os problemas por decreto, tornando o parlamento praticamente (ou realmente) desnecessário. Hitler, por exemplo, percebeu o estado de quase colapso temporário do parlamento alemão e foi, de forma oportunista, tirando proveito de sua decadência. No momento crítico, conseguiu o apoio de muitos que, embora o detestassem, consideravam o único homem forte o bastante para por as coisas em ordem e em marcha. O resultado do período ditatorial e sanguinário que dali se seguiu, todos conhecemos. Apenas o Comunismo conseguiu matar mais do que o Nazismo.

Decerto que a democracia não é perfeita, pois ela é colocada em prática por seres falíveis: seres humanos. Porém, ao contrário do que muitos alegam, é apenas em um regime democrático que pode haver um capitalismo real e a proteção das liberdades individuais. Muito se fala, pois, em democracia sem entender a substância, o real conteúdo dela. Lord Acton disse, sobre a liberdade, que ela não constitui “um meio para a consecução de um objetivo político superior. Ela própria é o supremo objetivo político. Ela não se faz necessária em virtude de uma administração pública; visa, antes, a assegurar a busca dos mais altos objetivos da sociedade civil e da vida privada”. E a democracia se configura como o instrumento institucional por excelência para dirimir conflitos, salvaguardar a paz interna e preservar, na medida do que é humanamente possível, a nossa liberdade individual. É um anteparo ao dirigismo e, por isso, é tão odiada pelos coletivistas.


E, por fim, é relevante entender que justamente pela democracia ser falível, deve ser preservada e tida como um valor essencial introjetado na cultura de uma sociedade, pois a democracia - via aparato parlamentar - é o mecanismo de controle que impede que o poder seja exercido de forma arbitrária. A democracia não é (e nunca foi) uma garantia absoluta contra a arbítrio per se, pois os seres humanos são deveras criativos em burlar e em engendrar estratagemas para miná-la. Até mesmo as leis mais bem-feitas podem ser subvertidas pelos que aplicam a lei. Porém sem a democracia, a tirania e a consequente escalada de arbítrios é 100% certa. Como reflexão, ressaltamos o adágio atribuído a Churchill: “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”. Nunca nos esqueçamos disso.



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