"Os socialistas acreditam em duas coisas absolutamente diversas e talvez até contraditórias, liberdade e organização”. – Elie Halévy
O conceito de socialismo é por vezes bastante mal compreendido. Embora ele possa corresponder a ideias de uma suposta justiça, mais igualdade e segurança, ele não se resume apenas a isso. Ele também abarca os cruéis e autoritários métodos para se alcançar esses proclamados fins e, para uns, apenas esses métodos são considerados válidos. A mecânica disso inclui o fim da iniciativa privada e dos meios privados de produção, num sistema econômico planificado, onde o empresário é substituído por um órgão central de planejamento.
Muitos se dizem socialistas mirando apenas na primeira parte da definição, os ideais tão-somente, e não se aprofundaram em detalhes sobre como tais ideais são de fato perseguidos e operacionalizados no mundo real, quais impactos em liberdades que de fato esse sistema gera. E esses inocentes úteis, por vezes, são diminuídos pelos puristas, pelos socialistas mais iniciados, por não terem aderido completamente. De todo modo, o debate dos meios é relevante (aliás muito necessário) até porque há defensores da planificação econômica e da produção "para o consumo" em detrimento da produção orientada pelo lucro, que não entendem que apenas métodos coercitivos e que violam as liberdades são os utilizados para tentar realizar tais ideais.
Na prática, o socialismo acaba sendo um gênero da espécie coletivismo, pois ambos valem-se dos mesmo métodos para alcançar fins que, a bem da verdade, são propósitos que até podem encontrar convergência teórica, abstrata, com outras correntes até mesmo liberais. Os fins (declarados publicamente), portanto, não são tanto o real cerne da discussão, mas sim como alcançaremos tais objetivos e quais as consequências reais disso versus o ideário abstrato e utópico.
A relevância de tal discussão é notória porque até mesmo liberais acabaram sendo sugados e persuadidos para defender movimentos como a social-democracia, que favorece um Estado controlador e interventor, abrindo mão de liberdades que foram duramente conquistadas. Esse ponto é crucial de ser compreendido, pois liberalismo e social-democracia (uma forma eufemística de socialismo) são, no fundo, numa análise mais detida, irreconciliáveis.
Entender as consequência práticas do uso de políticas de redistribuição e de planejamento central é crucial na medida em que permite às pessoas perceberem os perigos embutidos nesse ideário. O planejamento central esconde, por trás de um rótulo aparentemente inofensivo, um controle massivo da atividade econômica, de acordo com decisões políticas "top-down", num plano único que estabelece como os recursos da sociedade devem ser dirigidos, para servir a finalidades supostamente públicas ou coletivas. Logo, não se trata de um debate sobre se aplicar técnicas estatísticas e de planejamento administrativo, com raciocínio sistemático, é positivo, até porque muitas empresas se valem dessas técnicas em pequena escala e o fazem com alguma eficácia. O debate relevante é a respeito de como se dá a aplicação disso em larga escala (planejamento centralizado) e, como existe um alto grau de coerção, de sufocamento das liberdades e da livre iniciativa, qual é a real eficácia econômica e até a legitimidade política e moral disso.
O liberalismo, como doutrina, propugna que a livre iniciativa conjugada a um ambiente de concorrência tenderá sempre a ser a forma mais eficaz de orientar os esforços produtivos, sendo necessário para tal uma estrutura legal que dê respaldo e permita um "fair-play". Esse ambiente de negócios nem sempre será perfeito, nem mesmo a legislação que arbitra conflitos nele. Ainda assim, as estruturas imperfeitas engendradas por uma capitalismo "laissez-faire" são ainda assim mais eficazes para orientar a produção econômica e a geração de renda do que a planificação central socialista. Não é por mero acaso que os fluxos migratórios no mundo, desde tempos antigos, são em sua esmagadora parte realizados por pessoas que estão em Estados mais opressores e não-liberais para outros que são mais livres e, por consequência, prósperos.
O bom uso da concorrência é um pilar de organização social de natureza protetiva aos interesses dos cidadãos, pois quando os agentes de mercado têm a liberdade para negociar, comprar e vender ao preço que quiserem, há liberdade para o melhor uso das capacidades, talentos e habilidades de um povo. O Estado não tem de proteger grupos econômicos, categorias ou dar guarida para que eles tentem restringir acesso ao mercado a outros, seja via aberta ou via disfarçada, por meio de proteção legal, por meio de monopólios e oligopólios com barreiras de entrada e privilégios concedidos pelo Estado. Cercear os capazes de concorrer e de se lançarem abertamente à livre competição é cercear as possibilidades de maior desenvolvimento econômico para todos. Qualquer distorção no mecanismo de livre fixação de preços é, também, além de injusta, uma forma de turvar a capacidade de coordenação e planejamento dos próprios agentes econômicos e prejudicial, portanto, à própria eficiência da Economia.
Decerto que medidas de algum grau restritivo visando à proteção dos cidadãos é válida e não necessariamente vulnera a questão da livre concorrência. Proibir o uso de substâncias tóxicas ou exigir medidas acautelatórias para a utilização e manuseio de materiais perigosos, limitar as horas de trabalho ou prescrever certas disposições sanitárias, é inteiramente compatível com a manutenção da concorrência. O que os liberais defendem é que essas medidas sejam sempre avaliadas em termos do real custo-benefício e sejam aplicadas de maneira uniforme a todos que se enquadrem naquela situação ("rule of law"). Igualmente, não se pode dizer que a livre concorrência é incompatível com o oferecimento de serviços sociais, desde que numa magnitude que não torne o organismo econômico sobrecarregado financeiramente e, assim, pouco eficaz.
Há, ainda, campos em que a lógica concorrencial de mercado não é eficaz o suficiente e alguma gestão estatal acaba sendo necessária. A definição sobre a colocação de sinais de trânsito, sobre a construção ou não de vias públicas e de pontes, bem como o pagamento e o controle do uso desses não podem ser feitos de maneira tão eficaz se integralmente entregues aos meios privados. Questões envolvendo a poluição, o desmatamento, o uso de substâncias tóxicas dentre outras, sempre deverão ter uma gestão por parte do Estado, inclusive questões envolvendo recursos naturais das costa marítimas para evitar fenômenos como a "tragédia dos comuns", em que bens públicos como peixes no oceano, por exemplo, acabam sendo bastante depletados, pois cada agente agindo individualmente vai querer pescar para realizar seus interesses sem considerar os demais. Nesse tipo de situação, se não houver alguma fiscalização quanto ao limite de pesca, há um prejuízo para todos. O mesmo tipo de situação pode envolver o aproveitamento de água doce em rios ou em fontes de água, em que o poder público deve exercer fiscalização e controle, para evitar a tragédia dos comuns, em benefício de todos.
Como bem diz Hayek, em nenhum sistema racionalmente defensável seria possível o Estado ficar sem qualquer função, até porque é necessário um sistema de regras que balizem a competição e que possam ser aplicadas de maneira mais uniforme e impessoal possível, por uma terceira parte não interessada nos conflitos judiciais ou administrativos que possam existir ou, ainda, um mecanismo de proteção aos cidadãos frente a fraudadores e estelionatários. Russel Kirk, um conservador norte-americano, também é enfático ao dizer, em sua obra "A Política da Prudência", que uma sociedade anárquica, levando em conta o atual estado de coisas, a complexidade do mundo moderno, seria inviável e que o Estado é um ente decerto imperfeito, porém necessário.
O problema que ocorreu na Inglaterra e na Europa é que o sistema de livre mercado e livre concorrência ainda carecia de melhorias legislativas para dar conta de problemas como esses acima relatados e, no entanto, atropelou-se essa via de melhorias para suplantar um sistema de liberdades por um de planificação e de abolição da livre concorrência. Hayek assevera isso de forma clara: "o que une os socialistas da esquerda e da direita é essa hostilidade comum à concorrência e o desejo de substituí-la por uma ordem econômica dirigida". Ressalta, ainda, que o que se pode esperar disso tudo, mesmo num cenário menos maligno em que o socialismo não seja implantado completamente (ao menos por algum tempo), é uma situação em que nem os liberais nem os planejadores centrais triunfarão, gerando um arranjo de caráter corporativista-sindicalista em que a concorrência é bastante suprimida e o planejamento fica nas mãos de (inatacáveis) monopólios independentes, controlados por cada ator dominante daquele segmento econômico. O resultado disso, sabemos, é produtos e serviços piores, desigualdade de renda e oportunidades maiores, já que há atores e classes corporativas privilegiadas, e um desestímulo perene à melhoria e à inovação. Por conta do esforço de guerra dos dois conflitos mundiais no século XX, essa tendência de a economia ser levada a um patamar de menor concorrência, mais monopólios controlados pelo Estado, acelerou-se drasticamente, com efeitos que duraram por décadas, e é necessário clareza e coragem para demonstrar, sem meias palavras, esse problema e suas consequências.
Ainda que pareça sensato ou razoável, a priori, não se filiar a lados extremos, como um dirigismo exacerbado ou a uma competição atomizada, deve-se ter em mente que o mecanismo de livre competição não pode ser harmonizado com planejamento central. São duas antíteses irreconciliáveis. O único tipo de atividade de planejamento benéfico à concorrência é aquele empregado pelos burocratas e legisladores para tornar mais eficazes os mecanismos de fiscalização e coibição de abusos por parte dos "players" de mercado, para tornar a concorrência mais pujante e vital, nunca um planejamento para abolir o próprio e o tão importante pilar da livre concorrência. Quando a concorrência existe e é plena, a maioria se beneficia, quando é deficiente ou inexistente, apenas uma minoria que ganha às custas dos demais atores da sociedade. Não é difícil perceber o caminho correto a seguir.
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