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Capítulo 14- CONDIÇÕES MATERIAIS E OBJETIVOS IDEAIS - Hayek

Será justo ou razoável que o número maior de vozes

contrárias ao fim supremo do governo escravize um número

menor, que deseja ser livre? Se a força tiver de decidir,

mais justo será sem dúvida, o número menor obrigar o

maior a preservar sua liberdade (o que não seria fazer-lhe

injustiça) do que o maior, para satisfazer sua baixeza,

compelir o número menor a compartilhar com ele a

escravidão. Aqueles que não procuram senão sua justa

liberdade têm direito a conquistá-la, sempre que tiverem tal

poder, por mais numerosas que sejam as vozes em

contrário”. - John Milton



É um clichê das gerações do Século XX (e XXI também) pensar que concedem menos importância para as questões econômicas do que seus antecessores - o fim do homem econômico. Contudo, Hayek nos leva a analisar isso com maior acuidade. O ideal de uma suposta reconstrução social perpassa questões centrais que são de teor econômico, por uma reinterpretação de ideais como igualdade, fraternidade e segurança que se operacionalizam por meio de decisões político-econômicas. São doutrinas de raízes econômicas que guiam esses iluminados às falácias como a da “abundância em potencial”, “inevitável tendência aos monopólios” dentre outras.


Por outro lado, em parte a geração atual a que Hayek alude, decerto está menos afeta a certas considerações econômicas. Ela pouco se dispõe a sacrificar suas exigências, é mais impaciente e intolerante com restrições ao aumento de suas ambições imediatas, não querendo se curvar ante as necessidades econômicas. A noção de trade-off ou de custo de oportunidade está cada vez menos comum e isso se percebe na recusa ou inconformidade em reconhecer que existem obstáculos para a realização de seus desejos. Hayek cita a expressão “Economofobia” para esse tipo de comportamento. As forças impessoais às quais o homem se conformava e se submetia no passado são, agora, encaradas com ódio e revolta, pois são tidos como obstáculos aos seus esforços individuais. É natural que com a complexidade crescente da vida moderna, mais variáveis multifacetadas possam influenciar nos nossos resultados e, daí, surge essa resistência a tudo que não somos capazes de compreender plenamente.


A constante necessidade de ajustamento a um mundo cuja noção de causa e efeito está cada vez mais complexa, traz previsíveis angústias aos cidadãos. Por que certas categorias têm maior renda? Por que certas coisas de que se precisa são mais difíceis de obter do que outras? Por que temos de mudar de ocupação profissional? Essas são algumas perguntas que por vezes trazem uma miríade de fatores em conta e poucos são capazes de compreendê-los. Diante disso, muitos irão se apegar a explicações simplistas, reducionistas, enquanto o espectro de inter-relações complexas das causas passará despercebido.


Contudo, foi a submissão a um mercado com várias forças dispersas e impessoais que possibilitou o florescimento material do século XIX e XX. Porém, traçando um paralelo interessante, Hayek pondera que se antes fatores trágicos e de difícil explicação eram encarados com respeito, por um espírito até de certa humildade religiosa e epistemológica com o mundo e seus infortúnios e imprevistos, no presente o excesso de um caráter de racionalidade e de expectativa ou de busca por uma lógica implacável para tudo pormenorizadamente explicar, causa algum desconforto na sociedade. Trata-se, contudo, de um racionalismo incompleto (não somos capazes de apreender o todo) e, portanto, que nos leva a compreensões errôneas.


Diante disso, as mentes de muitos acham que se submeter a fatores de mercado considerados irracionais não é desejável. Porém a única alternativa a isso é a submissão a um poder autoritário, arbitrário e incontrolável, exercido pelos homens (políticos). E, como sabemos, a última opção é a pior, pois restrições autoritárias ainda mais penosas lhe serão impostas, no comunismo do mundo real, que guarda muita distância dos discursos que inflamam e defendem um mundo manifesto de maior prosperidade. O crescente e assombroso domínio sobre as forças e elementos da natureza nos séculos recentes, leva uma parcela não desprezível de cidadãos a acreditar (equivocadamente) que é possível também estabelecer um alto grau de domínio sobre as forças de uma sociedade, abrindo espaço para ideologias coletivistas. 


O ponto central é que a liberdade individual é inconciliável com a supremacia de um objetivo único ao qual a sociedade deva se subordinar de forma completa, autoritária e permanente. Apenas em períodos de guerra ou de calamidades esse tipo de visão - que sacrifica as liberdades - poderia ser defensável (temporariamente) como forma última e necessária de se buscar preservar a existência da própria sociedade e a sua liberdade, no longo prazo. Assim, é errôneo querer perpetuar o modo dirigista no emprego dos meios de produção (esforço de guerra), para tempos de paz, um certo modismo entre intelectuais europeus e ingleses no pós-guerra.

Esses mesmos intelectuais adoram usar palavras como “pleno emprego”, porém, com um fervor emocional de que deve ser perseguido ou obtido a qualquer custo - como se os recursos intelectuais e financeiros da sociedade e do governo fossem infinitos. O desemprego do pós-guerra, daqueles cidadãos que durante o esforço bélico foram direcionados para atividades especializadas e, após a guerra, se viram desempregados pelo cessar (parcial ou total) dessas atividades ou o fato que muitos passaram a ter uma remuneração menor, é um exemplo importante nessa discussão de busca pelo pleno emprego. Ora, é impossível garantir que surjam ocupações tão bem remuneradas como aquelas de outrora. Mais: tentar garantir salários elevados por decreto ou por movimentos sindicais é uma medida que fatalmente causará danos maiores, pois salários artificialmente inflados impõem custos elevados à sociedade em tributação e/ou inflação.


É certo que será necessário o retreinamento de muitos cidadãos no pós-guerra. Porém, o uso massivo de vultosos recursos para garantir que absolutamente todos encontrarão, após o treinamento, alguma ocupação tão bem paga como antes é não apenas impossível como improdutivo e gerador de inflação generalizada (pela impressão de moeda), além de violar liberdades individuais dos que pagam essa conta (caso se decida aumentar impostos massivamente para se buscar o tal pleno emprego). Os custos (econômicos, sociais e à liberdade) de uma massiva intervenção governamental em geral são muito piores do que as situações que se busca remediar.


Quanto à artificialidade, imposta pelo governo, nas relações econômicas, para tentar garantir pleno emprego, verifica-se que o resultado geral é sempre pior, não só porque os trabalhadores e setores protegidos implicam custos elevados ao restante da sociedade, como também porque haverá menores incentivos à inovação e dinamismo econômico. Se há uma garantia de salário artificialmente elevado em certas ocupações, os próprios fluxos e demandas por mão-de-obra serão afetados e trabalhadores poderão se recusar a ir para outros setores que poderiam ser mais produtivos por preferir ter uma ocupação protegida, o que ocasiona uma perda de produtividade geral da economia, dada a distorção de incentivos. Se há arbitrariedade, não há um livre fluxo de talentos potenciais e empresas nascentes podem não chegar à maturidade por terem dificuldade de obter mão-de-obra e, assim, as empresas protegidas irão abocanhar fatias maiores de mercado e se terá uma situação de maior desigualdade econômica, ambas as situações que (ironicamente) os “iluminados” desenvolvimentistas tanto condenam em seus discursos.


Hayek pondera que no pós-guerra a situação de um aumento da pobreza na Inglaterra era certa, porém, se o consumo dos agentes econômicos fosse mais austero, direcionando o restante dos recursos para poupança e investimento, para reconstruir a capacidade industrial, a Inglaterra recuperaria sua condição pré-guerra. E diante disso, para fazer o bolo econômico crescer, quem é mais eficaz e eficiente no uso dos recursos? Certamente que a iniciativa privada, que não usa os recursos de forma arbitrária e descuidada com o governo faz.

A tentação de executar um pesado redistributivismo de curto prazo deve ser evitada, por não ser capaz de proporcionar o aumento de renda duradouro para todos que um novo ciclo econômico pujante pode trazer. Mais: foi justamente uma classe média despojada de seus bens, espoliada, que levou à ascensão de um movimento autoritário na Alemanha. Algum grau de redistributivismo pode até não fazer tanto mal e, aliás, se bem dosado e direcionado, pode até fazer um bem, ao garantir um pouco de dignidade e esperança, um mínimo de conforto material necessário para a subsistência e o reerguer dos indivíduos. Contudo, um pesado grau desse remédio certamente é capaz de arruinar qualquer sociedade ao distorcer os incentivos econômicos ali existentes.


O mote popularesco (e errado) de “deixemos a economia de lado, vamos construir um mundo decente” é um problema sério, uma atitude irresponsável, pois é apenas pela economia, pela boa compreensão dela e de seus mecanismos, que se pode almejar construir um mundo decente. É certo e até positivo que as gerações atuais tenham mais preocupação com o próximo, a tal consciência social. Contudo, é necessário entender os reais mecanismos para se aumentar o bem-estar de todos e eles não são o coletivismo, o dirigismo ou o planejamento central. 


Hayek nos lembra que a noção de moral, de virtude, não existe de forma coletiva, mas sim sempre de forma individual. São indivíduos que decidem abrir mão de certa coisa em detrimento do bem ou conforto de outros, exercendo sua solidariedade. Solidariedade imposta de cima para baixo, pela via da mão pesada e coercitiva do governo, não constitui mérito ou moral per se, não é, em realidade, solidariedade genuína. A moral é na essência um fenômeno da conduta pessoal, a ser exercida com liberdade de decisão. Não há mérito em ser supostamente altruísta à custa de terceiros ou quando inexistir alternativa para decidirmos - quando somos compelidos pelo Estado.


O coletivismo tem tido efeitos negativos na esfera da conduta individual e da moral, portanto. A grande promessa do coletivismo é vir a isentar o cidadão de responsabilidades, pois o Estado estará a cargo de redistribuir e fazer a justiça social em seu nome. Ora, nesse estado de coisas, enfraquece-se a noção de obrigação pessoal para com o próximo, de carne e osso, que conhecemos pois, afinal de contas, o Estado o fará por nós. Com isso, nos tornamos, também, mais tolerantes com determinados abusos do Estado e mais indiferentes às desigualdades em casos reais individuais. A força associativa livre, o poder e o ímpeto de ação dos pequenos pelotões, tão aludidos por Edmund Burke, enfraquece-se sensivelmente nesse estado de coisas e os laços sociais se enfraquecem.

As virtudes mais essenciais para uma sociedade produtiva e que respeita o indivíduo são as menos presentes na atualidade: independência, confiança em si mesmo e disposição para assumir riscos, para defender posições e convicções pessoais contra a maioria e a disposição para cooperar com seus concidadãos. O coletivismo enfraqueceu essas virtudes do tecido social e trouxe a coerção para o indivíduo, a submissão para que ele faça o que a tal “coletividade” considera justo e não ele, por livre arbítrio.


As liberdades, infelizmente, passaram a ser, no século XX, cada vez mais deixadas de lado, em nome de um suposto bem coletivo. Valores tão essenciais como a liberdade e a independência, a verdade e a honestidade intelectual, a paz e a democracia, e o respeito pelo indivíduo como ser humano e não como simples membro de um grupo organizado, passaram a ser cada vez mais relativizadas, quando não aniquiladas por regimes altamente autoritários. Ademais, a própria segregação de indivíduos por pertencer a este ou àquele grupo (étnico ou de nacionalidade, profissional-laboral, econômico etc), passou a ser algo mais comum e injustiças atrozes são infligidas pelos governos aos indivíduos, no interesse de um ou outro grupo específico, e essas situações são olhadas com uma indiferença que beira a insensibilidade. Nos tornamos cidadãos letárgicos ou apáticos.


Tudo isso indica que nosso senso moral se esvaiu, em vez de ter se tornado mais refinado como alguns tentam alegar. Quando se diz popularmente, como bem aponta Hayek, que para fazer um omelete (justiça social) é necessário quebrar os ovos, temos, no caso, um atropelo aos valores e aos seus procedimentos sociais que demoraram décadas e até séculos para serem erguidos. O alvorecer da prosperidade liberal em um prisma material e moral, começa a ser ceifado e tantas atrocidades são cometidas com o beneplácito, patrocínio ou complacência de tantos (pseudo) intelectuais que se dizem (da boca para fora) liberais. E as virtudes hoje fora de moda são justamente as que mais orgulhavam o povo inglês e que desde o advento do Iluminismo britânico eram as sólidas bases da sociedade.


Como bem elenca Hayek “as virtudes nas quais em geral se admitia que esse povo superava os demais, com exceção de algumas nações pequenas, como os suíços e os holandeses, eram a independência e a fé em si mesmo, a iniciativa individual e a responsabilidade pela solução de problemas em nível local, a justificada confiança na atividade voluntária, a não-interferência nos assuntos dos vizinhos e a tolerância para com os excêntricos e os originais, o respeito pelo costume e pela tradição e uma saudável desconfiança do poder e da autoridade”.


A saudável desconfiança do poder e da autoridade, elemento central do ceticismo político que é parte central da doutrina do liberalismo clássico inglês, transformou-se em uma quase cega obediência e perigoso enaltecimento do Estado na Inglaterra e na europa continental.


Hayek observa que o êxito da propaganda britânica, a sua capacidade de promoção de seus interesses e de se projetar perante o estrangeiro, era também cada vez menor. A classe dirigente parecia ter perdido a confiança e a fé nos valores tradicionais e peculiares à civilização inglesa. A Intelligentsia esquerdista foi tão hábil em ludibriar a percepção dos atores estrangeiros (políticos, acadêmicos, diplomatas etc.) que a Inglaterra ficou cada vez mais incapaz de defender seu legado de instituições e tradições.


Para conseguir sucesso na guerra de ideologias e conquistar os cidadãos honestos dos países inimigos, há que se resgatar o passado inglês e a fé nos valores tradicionais que nos fizeram construir um legado de valores, defender com coragem moral e tenacidade os nossos ideais quando atacados pelos nossos inimigos. Não devemos ceder e pensar que é possível chegar a um meio termo entre a ideologia liberal e a autoritária-coletivista, pois são duas doutrinas completamente antagônicas e o caminhar do liberalismo para o coletivismo constitui um risco de um caminho sem volta. A fé inabalável nos valores que fizeram da Inglaterra uma nação de homens livres, retos, tolerantes e independentes é o que mais importa nessa batalha.





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