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Capítulo 11- O Fim da Verdade - O caminho da servidão - Hayek

“É significativo que em todos os países a estatização do pensamento tenha sempre caminhado pari passu com a estatização da indústria”. – E. H. Carr


Para que um sistema totalitário tenha sucesso é importante que não apenas todos ali sejam obrigados a trabalhar para os mesmos fins, como é essencial que o povo os considere os seus fins pessoais. Deve-se instilar um credo como sendo do povo, para que ajam espontaneamente de acordo com o que deseja o planejador central. Decerto que há opressão nos regimes totalitários, mas há também uma parcela não desprezível de pessoas que agem quase que espontaneamente como o regime quer.


O meio para se conseguir isso é pelo uso de técnicas de propaganda, que são desenhadas e coordenadas de forma a conduzir os indivíduos a uma mesma direção, almejando produzir uma padronização do estado mental (Gleichschaltung). Dado que as informações não têm um fluxo livre nesses regimes - o tráfego de informação é altamente controlado pelo Estado - mesmo pessoas sagazes e independentes podem acabar sofrendo influência não desprezível desse mecanismo se por muito tempo não consumirem outras informações de origem diversa.


A técnica de propaganda é apenas um instrumento que pode também ser usado para fins positivos, não é uma técnica má em si mesma. Porém, no regime totalitário, é usada com um escopo e magnitude para atingir fins que são qualitativamente negativos, sob uma perspectiva moral. Boa parte dos elementos humanitários da nossa moral (liberal), como o respeito pela vida humana, pelos fracos ou incapazes e pelo indivíduo em geral, tendem a desaparecer em um regime totalitário. Eis o problema que se encerra no uso dessa eficaz técnica para propagar ideias qualitativamente torpes.


Os efeitos ou consequências morais do uso da propaganda nos regimes totalitários são altamente danosos porque buscam minar um dos fundamentos mais básicos da ética: o senso de verdade e o valor ou respeito que temos por ela. A propaganda não se limita a apenas incutir valores, convicções morais; ela tem de avançar sobre elementos de natureza factual. Para incutir o novo código moral, o Estado tem de propagandear que certos meios conduzem a certos fins, estabelecendo elos causais que têm de ser (necessariamente) falseados. As pessoas terão de concordar não apenas com metas finais ou objetivos últimos, mas também com as ideias e os fatos intermediários que são base para o Estado tentar justificar esses fins almejados.


Um código moral completo que institui um conjunto de valores desejados dentro de um plano econômico central não existe em uma sociedade livre, de modo que os regimes totalitários precisam então criá-lo. Contudo tal plano é uma peça abstrata e ficcional e o planejador só perceberá os reais e agudos conflitos existentes entre as múltiplas necessidades à medida em que for avançando nesse processo. E isso exige tomadas de decisões em situações altamente concretas no que tange aos mais diversos campos, sobretudo no econômico e produtivo, com efeitos danosos sobre a vida dos cidadãos.


A necessidade de prestar algum esclarecimento acerca das decisões e dos critérios orientadores que serviram de suporte, leva o regime a ter de criar doutrinas, teorias e explicações ad hoc, de modo que o povo possa se convencer que tais escolhas são justas. Isso se dá não apenas para tentar refrear os ânimos contrários de oposição ao regime, mas também para conseguir arregimentar junto aos cidadãos mais moderados e pacíficos algum grau de apoio ativo às medidas tomadas. Essa cooptação é de extrema importância.


A criação de “mitos” nem sempre se dá de forma tão estruturada, racional ou consciente. Por vezes, são preconceitos inicialmente latentes contra um grupo (vide o antissemitismo) que geram uma (pseudo) justificação racional de fachada, criando uma teoria pseudocientífica a ser incorporada à ideologia principal, moldando a ação de todos. Outros mitos são inspirados por um romantismo bucólico, buscando infligir sentimentos de descontentamento com a moderna civilização industrial capitalista, como se deu nos regimes totalitários socialistas.


O meio mais eficaz de inculcar as ideias e os valores do regime nos cidadãos é fazê-los crer que tais valores são os mesmos deles, mas que antes não eram bem compreendidos ou apreciados, como se o regime fosse uma luz para trazer esclarecimento. E uma das maneiras mais hábeis de se fazê-lo é por meio da manipulação da linguagem, usando as mesmas velhas expressões, porém alterando a sua carga semântica, o seu significado (a famosa novilíngua), subvertendo-o completamente, por vezes, para que se amoldem aos valores e objetivos do novo regime.

Dentre os vocábulos mais deturpados, nesse processo, está “liberdade”. Historicamente, sempre que a liberdade que se conhecia foi aniquilada, fez-se assim em nome de uma nova liberdade prometida ao povo. Tal constatação, nos adverte Hayek, deve servir de alerta para termos cautela com as promessas de uma nova liberdade, tão comuns na política.


Essa deturpação ocorre não apenas no meio político per se, mas também nos meios intelectuais em que Karl Marx e Karl Mannheim, por exemplo, deturparam por completo o sentido de liberdade em nome de uma dita “liberdade coletiva”. E o mesmo se sucedeu com outros vocábulos que são pedras angulares do liberalismo como “justiça”, “lei”, “direito” e “igualdade”, cujos significados foram altamente violentados, hermeneuticamente, para atender aos propósitos doutrinários e propagandísticos dos regimes totalitários. Mais do que desnortear, iludir e subverter o sentido real dos conceitos para mudar a percepção do povo, a desvirtuação semântica dos conceitos ocasiona até uma dificuldade de se realizar um debate racional, já que as palavras têm uso muito fluido e podem uma hora significar algo e em outra hora um sentido diverso ou até inverso, se a doutrina do regime assim necessitar.


Mais do que induzir as mentes a pensar de forma deturpada (sem independência intelectual), há a necessidade também de silenciar a minoria resistente às mudanças que se mantém inclinada à crítica ao regime e seus rumos. Para tal busca-se fazer com que o plano de governo seja algo sacrossanto, acima de qualquer mera possibilidade de crítica pública, enaltecendo energicamente tanto os supostamente justos fins almejados como os meios, os métodos operacionalizados pelo regime.


Hayek cita uma passagem do livro Soviet Communism que analisa que “enquanto a obra está sendo executada, qualquer expressão pública de dúvida ou mesmo de receio quanto ao êxito do plano é um ato de deslealdade e até de traição por seus possíveis efeitos sobre a vontade e os esforços dos demais membros do quadro de funcionários” (p. 150) . Qualquer crítica, por mais sincera e de boa-fé, em um regime totalitário é encarada como um ato deliberado de sabotagem e traição. Um pecado capital nesta sociedade.


Todo o aparato de propaganda disponível ao regime em seus diversos meios - escolas, rádios, imprensa e cinema - serão pautados e empregados para disseminar as ideias e a doutrina do regime, não importando se são falsas ou verdadeiras, mas sim se elas fortalecem o poder ali instalado e reportam como justas as decisões e os métodos empregados. Hayek pondera que, por vezes, até mesmo a mera expressão de dúvida ou a mera hesitação a respeito das informações veiculadas pelo regime geram supressão (censura), vigilância e perseguição aos agentes que assim ousam se manifestar. A lealdade ao regime torna-se o critério absoluto para decidir se uma publicação ou informação pode ou não ser veiculada. O controle sistemático sobre as informações é ferrenho de modo a obter a uniformidade de pontos de vista.

No campo das ciências, sobretudo humanas, os estudos realizados são aqueles permitidos pelo regime, pois não pode existir a busca imparcial pela verdade em um Estado totalitário. Essas ciências tornam-se celeiros de criação de mitos doutrinários e “filosóficos” a serviço do aparato totalitário. Mesmo ciências exatas não ficam impunes a ataques e a tentativas de cerceamento e difamação. A matemática e a estatística, a título de exemplo, podem fazer parte da luta de classes na fronteira ideológica e serem tidas como um produto do papel histórico da matemática, como serva da burguesia. Pode-se condenar certos estudos mesmos na exatas porque eles supostamente não apresentam garantias de servir aos interesses do povo. Existe apenas uma matemática que presta, que é aquela a serviço do partido.


A própria ideia de uma atividade intelectual ou artística por si mesma, a arte pela arte, a ciência pela ciência, como um propósito de deleite e de investigação desinteressada, fruto do amor pela verdade, para se compreender o mundo que nos cerca, são condenadas por não haver um propósito ulterior alinhado aos propósitos do regime. Esse princípio se dirigia até mesmo a jogos e diversões, pois atividades espontâneas e livres podem levar a resultados sociais imprevistos, desviantes dos planos do regime.


Esse conjunto de práticas, de controle ferrenho sobre as atividades e sobre o fluxo de produção e disseminação de informação, não podem ser encarados como meros subprodutos acidentais do regime. Elas são parte essencial, consubstanciam-se com o regime, com o desejo de promover uma concepção una na sociedade (de cima para baixo). E quando a ciência não tem mais de servir à verdade, mas aos interesses de uma classe dirigente, a argumentação e o debate estarão sempre voltados para legitimar o regime. Em vez de descobertas espontâneas de baixo para cima, fruto do juízo individual de um cientista que busca entender a realidade, há apenas “descobertas” de cima para baixo, que servem para entoar e ressoar o ethos e as (pseudo) justificativas ao modus operandi do regime coletivista.


O pior nisso tudo é a condescendência de muitos (carreiristas) do meio intelectual e acadêmico, no Ocidente liberal, com o tamanho aviltamento direcionado para os que buscam a verdade em sua produção de conhecimento e pesquisas. Alguns casos de infiltração de agentes de serviços secretos no meio acadêmico e da mídia são conhecidos, mas muitos casos também eram uma demonstração genuína de simpatia pelos movimentos totalitários. É como se fossem galinhas a serviço da raposa...


O desejo de impor uma ideologia a outrem, ao povo, não é algo novo em si. Nova é a maneira de tentar justificar esse coletivismo. Alega-se, falsa e paternalisticamente, que não é possível existir liberdade de pensamento, pois as opiniões do povo são moldadas pela vulgar publicidade, pela aspiração de hábitos das classes superiores e, assim, o povo é vítima e fica conformado a padrões pré-estabelecidos. Daí conclui-se que se deve controlar o fluxo de informações para levar o povo a pensar da maneira que é conveniente à doutrina imposta pelo regime. Ainda que boa parcela dos indivíduos não consiga pensar de forma independente, esse direito ou mesmo desejo aspiracional não lhes deve ser tirado; e por outro lado, ainda que seja apenas uma minoria que consiga raciocinar com um grau razoável de independência, nem o mais qualificado dirigente deve ter o poder para retirar tal liberdade de quem quer que seja desses dois grupos. Ninguém deve ter o poder supremo de se arrogar na competência ou no direito de determinar o que deve ser pensado e veiculado, o que pode ou não ser falado. Isso é a semente do totalitarismo.

O livre pensamento apenas existe na efetiva interação de ideias contrárias que são contrapostas e debatidas e o resultado final é impossível de prever de antemão. É impossível planejar e organizar a evolução das mentes, das ideias, para alcançar o desenvolvimento ou progresso geral. Ao tentar fazê-lo, apenas criamos barreiras e a estagnação do pensamento, o franco declínio da razão.


O pensamento coletivista diz estar ao lado da razão, de ser fundamentado nela. Contudo, nada é mais falso do que isso, pois a razão é fruto de raciocínios individuais (efetuados livremente) submetidos ao escrutínio de uma sociedade livre. A evolução da razão não acontece por decreto ou por iluminados em gabinetes longe da realidade. O individualismo é muito mais aderente à noção de racionalidade e uma atitude muito mais virtuosa, mais humilde diante da dinâmica social que implica diálogo e tolerância para com as opiniões alheias.

Assim o coletivismo é a mais pura demonstração de arrogância intelectual implícita na ideia que o desenvolvimento e o processo social devem estar calcados em um pesado dirigismo de cima para baixo. O controle de ideias e sobre a verdade é a sua maior e pior marca, que gera toda sorte de consequências deletérias sempre observadas, sem nenhuma exceção, quando tais regimes são implantados. A certeza da tirania sobre as ideias, sobre as vidas, do fracasso humanitário dos regimes coletivistas é, decerto, absoluta.


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