Há aproximadamente 50.000 anos, o homem já havia adotado o estilo de vida do caçador-coletor (modo de vida que ainda existe em alguns pontos do mundo). A divisão do trabalho era limitada, com a principal separação sendo aquela entre mulheres, que atuavam principalmente como coletoras e homens, que atuavam principalmente como caçadores.
Sociedades baseadas na caça e na coleta viviam de maneira essencialmente parasítica. Isto é, nada acrescentavam à oferta de bens fornecida pela natureza, apenas exauriam os bens existentes. Esses grupos não produziam (exceto algumas poucas ferramentas); apenas consumiam. Eles não cultivavam e nem criavam; simplesmente esperavam que a natureza regenerasse e repusesse o estoque de bens consumidos.
O que essa forma de parasitismo gerava, portanto, era o inescapável problema do crescimento populacional. Para manter uma vida confortável, a densidade populacional tinha de permanecer extremamente baixa, sob pena de exaurimento dos bens naturais existentes e consequente extinção do grupo social.
As pessoas podiam, é claro, tentar impedir que tal pressão populacional surgisse, e de fato as sociedades de caça e coleta fizeram o possível nesse sentido: prática de aborto e infanticídios (principalmente infanticídio feminino) eram comuns. Entretanto, embora isso aliviasse o problema, não o resolvia. E a população continuou aumentando.
Dado que o tamanho da população não podia ser mantido em um nível estacionário, restavam apenas três alternativas para o crescente problema do "excesso" populacional: a) abrir mão da vida de caça e coleta e encontrar uma nova forma de organização social; b) entrar em conflito mortal para se apossar da oferta limitada de alimentos; c) mudar de território (migrar).
Embora a migração de modo algum fosse algo sem custos — afinal, tinha-se que trocar um território conhecido por territórios completamente desconhecidos —, ela se transformou na opção menos custosa. E foi assim que, partindo da África Oriental, sua terra natal, todo o globo foi sendo sucessivamente conquistado por grupos de pessoas que se separaram de seus familiares e foram formar novas sociedades em áreas até então nunca ocupadas por humanos.
Observando de forma objetiva, o fato é que, a partir de um determinado momento, a massa de terra disponível para ajudar a satisfazer as necessidades humanas não mais podia ser aumentada. Para utilizar um jargão econômico, a oferta do fator de produção "terra" se tornou fixa, o que significa que todo e qualquer aumento no tamanho da população humana tinha de ser sustentado pela mesma e imutável quantidade de terra.
Baseando-se na lei econômica dos retornos, sabemos que, para qualquer combinação dos fatores de produção — no caso específico: terra e trabalho —, existirá uma combinação ótima. Se este arranjo ótimo não for seguido, isto é, se apenas um fator de produção for aumentado — no caso, o trabalho — enquanto o outro — a terra — for mantido constante, então a quantidade de bens físicos produzida não aumentará absolutamente nada ou, na melhor das hipóteses, aumentará em uma proporção muito menor do que o aumento do fator trabalho.
Ou seja, tudo o mais constante, um aumento no tamanho da população para além de um determinado ponto não é acompanhado de um aumento proporcional da riqueza. Se esse ponto for ultrapassado, a quantidade per capita de bens físicos produzidos diminui. E o padrão de vida, na média, irá cair (fome e miséria). Atinge-se um ponto de superpopulação absoluta. O que fazer quando confrontado com esse desafio?
O desafio foi respondido com uma reação dupla: de um lado, por meio da “economização” da terra; de outro, por meio da "privatização" da produção de rebentos — em suma: por meio da instituição da família e da propriedade privada.
Portanto, o que pode ser considerado o primeiro passo rumo a uma solução da armadilha malthusian foi precisamente o estabelecimento da propriedade sobre a terra. Pressionados pela queda no padrão de vida — resultante da superpopulação absoluta —, membros das tribos (separadamente ou coletivamente) sucessivamente se apropriaram de um número cada vez maior de terras (natureza) até então desapropriadas.
Essa apropriação da terra teve um imediato efeito duplo. Primeiro, mais bens foram produzidos e, correspondentemente, mais necessidades puderam ser satisfeitas. De fato, esse efeito foi o exato motivo por trás da apropriação da terra: a constatação de que a terra possui uma conexão causal com a satisfação das necessidades humanas e que, mais ainda, ela pode ser controlada.
Foi ao controlar a terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de meramente consumi-los. (Importante observar que essa produção de bens também envolvia poupar e estocar bens para o consumo posterior). Segundo, e como consequência do primeiro, a maior produtividade obtida por meio da racionalização no uso da terra possibilitou que um maior número de pessoas pudesse sobreviver com uma mesma quantidade de terra (aumento na capacidade de geração de alimentos).
Com efeito, estima-se que a apropriação de terra e a correspondente mudança de uma existência baseada na caça e na coleta para uma existência baseada na agricultura e na criação de animais possibilitou que uma população de dez a cem vezes maior do que a população anterior pudesse ser sustentada (alimentada) com a mesma quantidade de terra.
Entretanto, a economização da terra era apenas parte da solução para o problema criado pela crescente pressão populacional. Por meio da apropriação da terra, fez-se um uso mais eficaz da mesma, permitindo que uma população amplamente maior pudesse ser sustentada. Porém, a instituição da propriedade da terra, por si só, não afetou o outro lado do problema: a contínua proliferação de novos rebentos. Esse aspecto do problema também requeria uma solução. Era necessária a criação de uma instituição social que deixasse essa proliferação sob controle. E a instituição criada para consumar esse objetivo foi a instituição da família.
Para solucionar o problema da superpopulação, junto com a instituição da propriedade, as relações sexuais entre os gêneros também tiveram de passar por mudanças estruturais.
Tudo indica que a instituição de um relacionamento monógamo estável entre homens e mulheres, o que atualmente é associada ao termo família, é algo relativamente recente na história da humanidade, tendo sido precedido por uma instituição que pode ser amplamente definida como sendo de relações sexuais "irrestritas" ou "não reguladas", ou mesmo de "matrimônio grupal" ou "poliamor" (algumas vezes também rotulado de "amor livre").
Essa forma de instituição possui um efeito direto na produção de rebentos. Como Ludwig von Mises comentou: "O fato é que, mesmo que uma comunidade socialista possa implementar o 'amor livre', ela não pode de maneira alguma ficar livre de procriações". Ou seja, o amor livre tem consequências: gravidez e descendentes. E uma prole gera benefícios e também custos.
Analisando apenas o aspecto econômico, tal dilema não seria um problema enquanto os benefícios excedessem os custos, isto é, enquanto um membro adicional da sociedade agregasse mais a ela como produtor de bens do que subtraísse dela como consumidor — e isso pode perfeitamente vir a ser o caso por algum tempo.
No entanto, como ensina a lei dos retornos, essa situação não dura para sempre. Inevitavelmente, chegará um ponto em que os custos de rebentos adicionais irão exceder os benefícios. A partir daí, portanto, qualquer procriação adicional será interrompida, a menos que se queira vivenciar uma queda progressiva nos padrões de vida (fome e miséria). Contudo, se as crianças são consideradas como sendo de todo mundo e, ao mesmo tempo, de ninguém, pois todo mundo mantém relações sexuais com todo mundo, então os incentivos para conter a procriação desaparecem ou são significativamente diminuídos.
De um ponto de vista puramente econômico, portanto, a solução para o problema da superpopulação deveria ser imediatamente aparente. A administração das crianças — ou, mais corretamente, a curadoria das crianças — tinha de ser privatizada. Em vez de considerar as crianças como sendo responsabilidade da "sociedade", não estando aos cuidados de ninguém especificamente, as crianças tiveram de passar a ser consideradas entidades que foram produzidas privadamente e, por isso, confiadas aos cuidados privados de quem as produziu.
Com o advento da formação de famílias, em estreita ligação com a propriedade privada sobre a terra, a maior renda social possibilitada pelo aumento da produtividade não mais era distribuída como era anteriormente: para cada membro da sociedade "de acordo com suas necessidades". A fatia de cada família no total da renda passou a depender do produto que cada uma imputava à economia — isto é, passou a depender do seu trabalho e da sua propriedade investidos na produção.
Em outras palavras: o difuso "socialismo" desapareceu da relação entre os membros das diferentes famílias, visto que rendas eram distintas, dependentes da quantidade e da qualidade do trabalho e da propriedade investidos, e ninguém tinha o direito de reivindicar a renda produzida pelos membros de outra família. Com isso, a "carona" sobre os esforços alheios tornou-se amplamente — ou totalmente — impossível. Aquele que não trabalhasse não mais poderia esperar comer gratuitamente.
Deste modo, em resposta à crescente pressão populacional, um novo modo de organização social passou a existir, substituindo aquele estilo de vida "caça e coleta" que havia caracterizado a maior parte da história.
Baseado no texto do Instituto Mises: https://www.mises.org.br/article/1037/a-origem-da-propriedade-privada-e-da-familia (acesso em 09/07/2022)
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